“Jornalistas-jornaleiros” constroem a realidade com responsabilidade social

No jornalismo por muito tempo foi pacífico o entendimento de que sua principal atribuição era refletir a realidade, tal qual um espelho a imagem.
Exemplares do jornal Boca de Rua, mais fotos separadas registradas por seus colaboradores / Foto: Vinny Vanoni
“Os jornalistas não são simplesmente observadores passivos, mas participantes ativos no processo de construção de realidade. E as notícias não podem ser vistas como emergindo naturalmente dos acontecimentos do mundo real; as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento” (TRAQUINA, 1993:168).

A proposta era ouvir profissionais de jornais alternativos às mídias hegemônicas de Porto Alegre. Na terça-feira (10), a convite dos estudantes de jornalismo da Faculdade São Francisco de Assis, o jornalista Matheus Chaparini do Jornal Já, e os jornalistas Édson e Ezequiel do Boca de Rua, contaram um pouco de suas histórias, do dia-dia de trabalho e os aprendizados da função. Um papo aberto, sem protocolo, com comida e bebida a disposição de quem levantasse e se servisse.

No início da reunião, Édson chamou a atenção de um aluno quando esse riu de outro colega. “Por causa da fala”, justificou quem deu a risada. De cara, o jornalista do Boca disse que nas reuniões em que participa não é permitido o deboche, nem o preconceito ou qualquer forma de desvalorização do companheiro.

Na roda de conversa alunos, professores e convidados se alternavam entre perguntas e respostas, sem a intermediação clássica dos debates. Era livre a manifestação. Os rapazes do Boca, ambos moradores de rua, puxaram a frente contando sobre casos apurados pelo jornal. Boa parte delas sobre a violência cometida contra seus pares.

Acostumados com o protagonismo em eventos dessa natureza, não titubearam em contar sobre o preconceito que sofrem por serem moradores de rua. Da dificuldade que é fazer jornalismo a partir dessa condição. E dá violência com que são tratados pelos agentes do Estado, nas noites, em ruas escuras, longe o suficiente para que ninguém ouça os pedidos de socorro.

“O problema é o que acontece à noite. De dia é muita gente. Eles te levam pra rua mais escura que tem. Não tem ninguém, você pode berrar, pode gritar. Eu vejo isso acontecer”, conta o jornalista Édson.

Da esquerda para a direita Matheus, Édson e Ezequiel / Foto: Vinny Vanoni



Matheus, o sujeito calado ao lado dos guris do Boca, soltou o verbo ao contar de seu envolvimento no caso da ocupação do prédio da Receita Estadual, sua prisão e as consequências do episódio. Na própria narrativa do fato, foi possível saber como são tratados os profissionais de comunicação das mídias alternativas pelo braço armado do Estado.

O caso rendeu apoio, mas também recebeu críticas. A época, um colega de outra empresa colocou em cheque a credibilidade do profissional, Chaparini. Porque no perfil do facebook haviam fotos, onde Matheus participava de protestos, segundo quem o acusava. Perguntado se havia respondido as críticas recebida disse, “Não respondi. Primeiro que tenho um pingo de vergonha na cara, e eu não vou bater boca com outro jornalista sobre o que é ou não jornalismo”.

O convidado do Já não acha errado que jornalistas se manifestem, na verdade considera até “interessante”, que o leitor saiba o que pensa quem escreve. Mas quando há assinatura da empresa, pode ser “problemático”, diz.

Sobre a produção da notícia, ambos os veículos para quais os “jornalistas-jornaleiros” (palavras do encarcerado) trabalham, possuem uma disposição maior para a apuração de pautas que envolvem  questões sociais. O Boca de Rua, devido a sua origem e por quem produz o jornal. No caso do Já, segundo Chaparini, "Tu [jornalista] tem maior liberdade de poder sugerir pauta. Tem maior influência sobre aquele produto e um conhecimento mais próximo de como todo o processo dele funciona. O jornalismo que se faz, ele acaba refletido muito a forma como tu te organiza. E a forma de como funciona a relação de trabalho interna da coisa."

Entenda o caso da prisão do Chaparini

Matheus e mais nove foram presos pela Brigada Militar em operação de desocupação do prédio da Receita Estadual no dia 15 de junho/2016. No exercício da profissão, mesmo depois de se identificar, foi levado e apresentado na 3º Delegacia de Pronto Atendimento de Porto Alegre. As dez pessoas presas foram autuadas por dano ao patrimônio, resistência, associação criminosa, esbulho possessório (porque se apropriaram do imóvel), corrupção de menores e crime contra organização de trabalho.  Os outros 33 adolescentes foram apreendidos.  

A ocupação foi resultado da insatisfação dos adolescentes com o acordo feito entre governo estadual e um outro grupo de estudantes secundaristas, que na época ocupavam as escolas públicas da província. O grupo rebelado ocupou o prédio na intenção de se reunir com as autoridades para expressar posição contrária ao trato firmado. Não obtiveram sucesso. 



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